Autor: Thiago Cruz - 24/12/2024 02:38:46
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A doutrina da kenosis, baseada no texto de Filipenses 2:5-11, destaca o esvaziamento voluntário de Cristo como a expressão máxima do amor divino e da solidariedade de Deus com a humanidade. Essa doutrina não apenas explora o mistério da encarnação e do sofrimento de Cristo, mas também oferece implicações práticas e teológicas profundas para a fé cristã. A kenosis demonstra a renúncia de Cristo aos privilégios divinos para assumir plenamente a natureza humana, culminando em sua obediência até a morte na cruz. Este artigo visa examinar a base bíblica e a interpretação teológica da kenosis, além de suas implicações para a soteriologia e para a vivência cristã. Ao explorar essas dimensões, o artigo busca mostrar como a kenosis oferece um modelo ético e um padrão de vida fundamentado na humildade, no serviço e no amor sacrificial.
1. A Base Bíblica da Kenosis
O termo Kenosis (do grego κένωσις), que significa "esvaziamento", aparece em Filipenses 2.7 “[...] mas esvaziou-se a si mesmo [...]”[1]. Para o Dr. Heber Campos só é possível entender a Kenosis, se entendermos outro termo Tapeinosis (do grego ταπείνωσις), que significa humilhação[2]. O esvaziamento aponta para uma autorrestrição deliberada, em que Cristo velou sua glória divina para assumir plenamente a condição humana.
A frase "assumindo a forma de servo" complementa essa ideia, destacando que Cristo não apenas se tornou humano, mas tomou a posição mais humilde dentro da humanidade. O termo grego morphēn doulou (μορφὴν δούλου) que significa “forma de servo”, implica que Ele adotou a natureza e a essência de um servo, vivendo em completa submissão à vontade do Pai e em serviço à humanidade. Esse ato de humilhação extrema é central para o argumento de Paulo, pois contrasta com a glória eterna de Cristo como Deus pré-existente, morphē Theou (μορφῇ Θεοῦ), "em forma de Deus". No entanto, ao mesmo tempo, enfatiza a profundidade de sua obediência, que culmina na cruz.
O contexto literário da epístola reforça o caráter prático desse hino, já que Paulo o utiliza para demonstrar a atitude de serviço e abnegação que os cristãos devem adotar. Teologicamente, essas expressões ilustram a união hipostática, em que a Pessoa Divina do Logos assume plenamente a natureza humana sem abandonar sua divindade. O sofrimento e a obediência de Cristo, expressos por essas frases, também estão ligados ao tema do Servo Sofredor de Isaías 53, mostrando que a humilhação de Cristo foi parte essencial do plano de redenção. Portanto, o esvaziamento e o serviço não apenas revelam o caráter de Cristo, mas também oferecem um modelo prático de humildade e sacrifício para a comunidade cristã.
2. A Interpretação Teológica da Kenosis
A relação entre o teopasquismo[3] e Filipenses 2:5-11 está na centralidade do esvaziamento e do sofrimento de Cristo, que são descritos nesse hino cristológico. O teopasquismo afirma que Deus, na Pessoa do Filho, sofreu na carne, e Filipenses 2 oferece a base bíblica para essa ideia ao descrever a auto-humilhação de Cristo. Cirilo, um dos principais defensores do teopasquismo, escreveu: "Um da Trindade sofreu na carne, não em sua natureza divina, mas porque assumiu a carne que pode sofrer" (CIRILO DE ALEXANDRIA, 1994, p. 35)[4]. O texto de Filipenses menciona que Cristo, "subsistindo em forma de Deus", "esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens" (v. 6-7) e "a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz" (v. 8).
Do ponto de vista teológico, o teopasquismo vê o sofrimento de Cristo como um ato que envolve a totalidade de sua pessoa. Em Filipenses 2, a frase "esvaziou-se a si mesmo" reflete a kenosis, ou seja, a renúncia voluntária de Cristo ao exercício pleno de seus privilégios divinos, sem deixar de ser Deus. Essa auto-humilhação culmina na cruz, onde a obediência perfeita de Cristo é manifestada.
A frase "assumindo a forma de servo" reforça essa conexão, pois indica que Cristo não apenas tomou a natureza humana, mas também escolheu viver em submissão, identificando-se plenamente com a condição humana, inclusive em seu aspecto de sofrimento. Em Filipenses, o texto culmina na exaltação de Cristo (vv. 9-11), mostrando que o sofrimento e a humilhação não contradizem sua divindade, mas, ao contrário, são parte do plano redentor. Tomás de Aquino abordou a comunicação de atributos em relação à paixão de Cristo: "O sofrimento de Cristo pode ser atribuído à pessoa divina, mas somente em sua natureza humana, pois a divindade permanece impassível" (TOMÁS DE AQUINO, 2008, p. 347)[5].
Assim, o teopasquismo encontra em Filipenses 2 um fundamento bíblico que afirma a condescendência divina em Cristo. A kenosis e o sofrimento na cruz revelam a solidariedade de Deus com a humanidade, sem comprometer sua imutabilidade divina, um mistério teológico que aponta para o amor redentor de Deus e a profundidade da encarnação. Filipenses 2, portanto, sustenta a tese de que Deus, na Pessoa de Cristo, realmente sofreu, mas em sua natureza humana, sem que sua divindade fosse alterada ou diminuída.
Para Jügen Moltmann, havia uma dificuldade para os cristãos primitivos na questão do “Deus sofredor”. Moltmann, refletindo sobre o sofrimento de Deus, afirmou: "Na cruz, Deus não se separa do sofrimento humano, mas entra nele, assumindo-o em sua totalidade para redimir" (MOLTMANN, 2008, p. 97)[6].
E continua:
Começamos afirmando que a adoção do conceito filosófico grego do ‘Deus incapaz de sofrer’ da igreja primitiva, gerou dificuldades na cristologia, as quais só a teologia mais recente procurou combater. Porém, antes que ‘o Deus que sofre’ se tornasse o tema da teologia cristã no presente, a teologia judaica já estava discutindo esse assunto. A teologia cristã não pode fazer nada além de aprender com essa nova exegese judaica da história de Deus no Antigo Testamento e no sofrimento presente do povo judeu.[7]
3. Implicações da Kenosis para a Soteriologia
A kenosis, entendida como o esvaziamento voluntário de Cristo descrito em Filipenses 2:5-11, tem implicações profundas para a soteriologia, pois aborda o modo como Cristo, sendo Deus, assumiu plenamente a humanidade para realizar a redenção. A renúncia ao uso pleno de seus atributos divinos em sua encarnação não diminui sua divindade, mas revela sua condescendência e submissão à vontade do Pai, permitindo que Ele vivesse, sofresse e morresse como verdadeiro representante da humanidade. Esse ato de esvaziamento é fundamental para a obra salvífica porque demonstra que Cristo se identificou plenamente com os seres humanos, não apenas no aspecto físico, mas também nas fraquezas e limitações inerentes à condição humana, exceto no pecado (HEBREUS 4:15).
A renúncia de Cristo reflete o amor sacrificial de Deus ao enviar o Filho para redimir o mundo, destacando a perfeita obediência de Jesus ao plano do Pai. Essa obediência culmina na cruz, onde a auto-humilhação de Cristo, simbolizada por seu esvaziamento, é realizada na sua plenitude. Karl Barth destaca que o esvaziamento não é apenas uma renúncia à glória divina, mas o ato supremo de Deus em se dar à humanidade, tornando a encarnação o ponto central da salvação
A kenosis não é uma diminuição da divindade de Cristo, mas sua plena manifestação em amor. Deus, ao humilhar-se em Cristo, permanece plenamente Deus e, ao mesmo tempo, torna-se plenamente homem [8]
De maneira semelhante, Jürgen Moltmann aponta que, ao assumir a fraqueza e o sofrimento humanos, Cristo transforma a cruz de um instrumento de condenação em um meio de redenção, unindo Deus ao sofrimento humano de forma definitiva. Segundo ele: “Na cruz, Deus não se retira do sofrimento humano, mas entra nele, tornando a experiência de abandono e morte o local de sua maior solidariedade com a criação” (MOLTMANN, 2008, p. 97)[9].
Além disso, a auto-humilhação divina tem implicações práticas, pois estabelece Cristo como o mediador perfeito entre Deus e a humanidade. Em sua natureza divina, Ele é capaz de oferecer um sacrifício de valor infinito; em sua natureza humana, Ele é capaz de representar os seres humanos de maneira plena. Tomás de Aquino argumenta que a união dessas duas naturezas torna possível a expiação dos pecados, já que o sofrimento de Cristo, enquanto humano, possui mérito infinito devido à sua união com a divindade. Diz Tomás de Aquino que
O sofrimento de Cristo, enquanto pertencente à sua natureza humana, possui mérito infinito devido à união hipostática, permitindo que seja suficiente para a expiação de todos os pecados[10].
A abnegação do Verbo encarnado também transforma a compreensão cristã do amor e do serviço. A humildade de Cristo, que "não considerou o ser igual a Deus algo a que devia apegar-se, mas esvaziou-se" (FILIPENSES 2:6-7), oferece um modelo ético para os cristãos, chamando-os a viverem em humildade e serviço aos outros. Hans Urs von Balthasar observa que a renúncia de Cristo revela um amor tão profundo que só pode ser compreendido como um reflexo da natureza divina, desafiando os cristãos a imitar esse amor em suas relações interpessoais. Balthasar complementa dizendo em seu livro Teologia da História que “A renúncia do Filho na encarnação é a revelação suprema do amor trinitário. Esse esvaziamento, longe de negar a divindade, a revela em sua profundidade mais radical” (BALTHASAR, 1991, p. 203)[11].
Em resumo, o ato de autoesvaziamento de Cristo não é apenas uma explicação teológica sobre a encarnação, mas a base da obra salvífica. Ele demonstra como Deus entrou na história humana, assumindo plenamente suas limitações para oferecer redenção por meio da cruz. A partir desse ato de auto-humilhação, Deus não apenas resgata a humanidade, mas também estabelece um modelo de vida centrado na humildade, no sacrifício e no amor redentor.
4. Aplicações Práticas da Doutrina da Kenosis
A doutrina da kenosis, descrita em Filipenses 2:5-11, oferece profundas aplicações práticas para a vida cristã, moldando tanto a ética pessoal quanto a vivência comunitária dos crentes. A principal implicação prática está na exortação à imitação de Cristo, cuja humildade e abnegação se tornam o modelo supremo para os cristãos. Como Paulo afirma: "Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus" (FILIPENSES 2:5). Este esvaziamento ensina que o verdadeiro amor exige renúncia e serviço, o que desafia os crentes a abandonarem o egoísmo e viverem para o bem dos outros, refletindo o espírito de Cristo em suas ações.
Uma segunda aplicação está na dimensão comunitária da fé. A humildade demonstrada por Cristo ao "assumir a forma de servo" (FILIPENSES 2:7) inspira os cristãos a buscarem a unidade e o serviço mútuo dentro da igreja. Hans Urs von Balthasar ressalta que "a renúncia de Cristo, longe de ser apenas um ato isolado, é um convite para que a comunidade cristã viva de acordo com o mesmo princípio de auto-doação" (BALTHASAR, 1991, p. 203)[12]. Essa postura reforça a importância de uma vida comunitária que priorize o amor e a empatia, superando divisões e conflitos.
Além disso, a renúncia de Cristo também molda a ética cristã no mundo. A humildade e a obediência de Cristo até a morte desafiam os crentes a assumirem uma postura de serviço sacrificial em suas vocações e interações diárias. Karl Barth argumenta que "a kenosis não é apenas uma doutrina sobre Cristo, mas um paradigma de como Deus age e, por isso, de como seus seguidores devem agir" (BARTH, 2006, p. 482)[13]. Esse princípio aplica-se tanto às relações pessoais quanto às questões sociais, incentivando os cristãos a se engajarem em causas que reflitam o amor e a justiça de Deus.
Por fim, a doutrina da kenosis aponta para uma esperança escatológica, lembrando os crentes de que, assim como Cristo foi exaltado após sua humilhação, também eles experimentarão a glorificação ao seguir seu exemplo de abnegação. Jürgen Moltmann observa que "a kenosis é o caminho pelo qual Deus conduz a criação à plenitude, e os que participam desse caminho experimentam a promessa de uma renovação futura" (MOLTMANN, 2008, p. 112)[14]. Esse aspecto motiva os cristãos a perseverarem na fé e no serviço, com os olhos fixos na promessa de uma recompensa eterna.
Assim, a doutrina da kenosis não é apenas um mistério teológico, mas uma convocação prática para que os cristãos vivam em humildade, serviço e obediência, refletindo o caráter de Cristo em todas as áreas da vida. Essa aplicação abrange a dimensão pessoal, comunitária e social, oferecendo um padrão ético transformador e uma esperança que transcende a realidade presente.
Conclusão
A doutrina da kenosis, além de ser um pilar
teológico sobre a encarnação de Cristo, é também uma fonte inesgotável de
inspiração prática para a vida cristã. Ao esvaziar-se de seus privilégios
divinos, Cristo demonstrou a essência do amor e do sacrifício, chamando seus
seguidores a viverem em humildade, serviço e entrega. Teologicamente, a kenosis
revela o profundo mistério da união hipostática e da condescendência divina,
mostrando como Deus se identificou plenamente com a humanidade sem comprometer
sua divindade. Soteriologicamente, a kenosis destaca a obediência de Cristo
como o mediador perfeito entre Deus e os homens, cuja obra culminou na cruz. Na
vida prática, ela aponta para a necessidade de imitar o caráter de Cristo,
tanto em atitudes pessoais quanto em ações comunitárias e sociais, promovendo
unidade, serviço e uma ética de amor. Em última análise, a kenosis oferece não
apenas um modelo de vida, mas também uma esperança escatológica, lembrando que
a humilhação e o sacrifício em Cristo conduzem à glorificação final. Assim,
essa doutrina se apresenta como um chamado à transformação pessoal e à vivência
de um cristianismo centrado na humildade e no amor redentor.
[1] BÍBLIA. A BÍBLIA SAGRADA: Tradução Almeida Corrigida Fiel. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana, 2011
[2] CAMPOS, Heber Carlos de. A Humilhação do Redentor. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2008, p. 33
[3] O teopasquismo é uma doutrina teológica que afirma que Deus, em sua essência divina, sofreu na cruz de forma real, sendo a base dessa ideia a união hipostática, que sustenta que Jesus Cristo é uma única pessoa com duas naturezas, divina e humana. Essa perspectiva ganhou força nos debates cristológicos dos primeiros séculos da Igreja, especialmente no contexto das controvérsias envolvendo o nestorianismo e o monofisismo.
[4] CIRILO DE ALEXANDRIA. Contra Nestório. Tradução de João A. Moreira. São Paulo: Paulus, 1994.
[5] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Correia. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 2008.
[6] MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado. Tradução de Rowan Williams. São Paulo: Editora Vozes, 2008. p. 97
[7] MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado. Tradução de Rowan Williams. São Paulo: Editora Vozes, 2008, p. 339
[8] BARTH, Karl. A Dogmática da Igreja. Tradução de Francisco O. Rocha. Vol. II. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
[9] MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado. Tradução de Rowan Williams. São Paulo: Editora Vozes, 2008
[10] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Correia. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 2008.
[11] BALTHASAR, Hans Urs von. Teologia da História. Tradução de João Batista Libanio. São Paulo: Loyola, 1991, p.203
[12] BALTHASAR, Hans Urs von. Teologia da História. Tradução de João Batista Libanio. São Paulo: Loyola, 1991, p.203
[13] BARTH, Karl. A Dogmática da Igreja. Tradução de Francisco O. Rocha. Vol. II. São Leopoldo: Sinodal, 2006. p. 482
[14] MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado. Tradução de Rowan Williams. São Paulo: Editora Vozes, 2008. p. 112